Hackeando a gastronomia molecular: como fazer uma peça de carne sous vide usando só um cooler de cer
Gastronomia molecular, culinária molecular, cozinha modernista... Há uns 15 anos, era quase só disso que se falava nos meios, digamos, gourmets. Trata-se de uma abordagem científica da culinária – com métodos e materiais e equipamentos que antes frequentavam somente laboratórios de pesquisa. Durante muito tempo, os restaurantes mais badalados serviram espuma disso, fumaça daquilo, esferas de sei-lá-o-quê. Demorou, mas deu: as pessoas finalmente perceberam que o sabor e a qualidade são mais importantes do que a pirotecnia cientificista.
A tal gastronomia molecular, no entanto, deixou seu legado. O mais relevante é o uso da técnica de cocção sous vide – jeito afrancesado e abestalhado de se dizer “a vácuo” – em baixa temperatura. O método permite preparar alimentos, em especial carnes e peixes, com um controle preciso do ponto de cozimento. E dá-lhe ovo “perfeito”, cozido a tantos graus por horas a fio.
O problema da gastronomia molecular reside mais na atitude do que na substância. Os poucos que dominavam a técnica, restrita às recém-criadas escolas de culinária com status acadêmico, fizeram de tudo para fazer a coisa parecer mais complicada do que ela de fato é. Mas, no fim, não é feitiçaria: é tecnologia. E nós, em um engano compreensível, tendemos a associar automaticamente o termo “tecnologia” à alta tecnologia. Pois, no meu caso, a única forma economicamente viável de ter acesso à gastronomia molecular foi lançar mão da mais baixa tecnologia disponível no mercado.
E assim eu resolvi preparar uma peça de carne sous vide usando somente um cooler de cerveja.
Se você quiser fazer as coisas segundo o figurino clássico, precisa comprar dois equipamentos caríssimos e trambolhudos. Um deles é o termocirculador (foto acima), espécie de panela elétrica que mantém a água em temperatura precisa e constante. O outro é uma seladora, máquina profissional de embalar a vácuo. Juntos, os dois gadgets saem por quase R$ 9 mil.
Sem chance. Então vamos ao plano B.
Você vai precisar de um cooler de cerveja e de um termômetro culinário.
Atenção: não serve um isopor de farofeiro. Precisa ser um cooler de farofeiro, que tem isolamento térmico muito melhor – tanto para coisas quentes quanto para as frias. Se você ainda não tem um desses, não sei por que leu até aqui. Brincadeira. Você consegue comprar uma caixa térmica assim por menos de 100 reais nos Wal Marts da vida.
Quanto ao termômetro, é mais barato ainda e vai ser utilíssimo para uma série de preparações. Digite “termômetro culinário” no Google e compre o seu online.
O cooler resolve o problema da temperatura, mas não o do vácuo. A solução mais preguiçosa possível: comprar uma peça já embalada a vácuo. Como alternativa, você pode tirar o máximo de ar possível de um saco ziplock. Mas isso eu nunca tentei.
O ponto negativo de cozinhar a carne direto na embalagem é que não dá para temperá-la. Tudo bem, você faz isso na hora de grelhar o bichão. Acredite, você vai precisar passá-lo na frigideira se quiser uma aparência minimamente apetitosa.
Mãos à obra, portanto.
Você joga um caldeirão de água fria no cooler e completa com água quente até atingir um ou dois graus acima da temperatura desejada (quando você jogar a carne fria, o calor do ambiente vai cair um pouco). O livro Modernist Cuisine, bíblia da gastronomia molecular, tem quatro páginas inteiras de tabelas com temperaturas e tempos de cozimento – não dá para reproduzir aqui. Em vez disso, vou copiar e colar a tabela do blog The Food Lab, de onde tirei a ideia (recomendo fortemente a leitura).
Cozinhei meu belo bife ancho argentino – uma peça de quase um quilo – por 3 horas, a 57 graus. O sous vide funciona da seguinte maneira: na tabela acima, o tempo mínimo de preparo equivale ao lapso necessário para que as temperaturas do centro da carne e da água no cooler se igualem. Quando isso acontece, o alimento está tecnicamente cozido. Se você deixar a peça em imersão mais longa, o que ocorrerá é a quebra das moléculas que compõem o tecido conjuntivo – basicamente colágeno – em gelatina.
Esse processo também ocorre quando a carne é exposta ao calor direto e mais intenso. As peculiaridades do método sous vide, porém, são decisivas. Em primeiro lugar, a carne não perde líquido – em outras palavras, não resseca. Depois, o calor brando é o bastante para cozinhar, mas não para alterar significativamente a cor e a textura da carne crua.
Assim, meu bife ancho cozido por três horas saiu do cooler com jeitão de um naco de carne crua, mas incrivelmente macio. Salguei, apimentei e grelhei a carne dos dois lados em uma frigideira de ferro bem quente.
O bife fica com aparência externa de um grelhado comum e, por dentro, vermelho como se estivesse completamente cru. A consistência é de carne cozida, úmida, mole até demais: fica quase gelatinosa, sem oferecer nenhuma resistência aos dentes. Eu prefiro churrasco, mas não descarto usar novamente o método sous vide. Ele é quase à prova de erros e muito prático quando você precisa grelhar uma peça muito grande.