A arte de encher linguiça
Em primeiro lugar, por que fazer linguiça em casa?
É tão fácil comprar linguiça barata e deliciosa. Qual a finalidade, então, de se dar a tanto trabalho?
A linguiça caseira é muito melhor do que a industrial. Para estender a data de vencimento, os fabricantes abusam de aditivos como o nitrato e o nitrito de sódio, presentes em todos os produtos comerciais à base de carne de porco. Não vamos falar em conservantes. É bobagem demonizar os conservantes: o sal de cozinha, a banha e o vinagre, tecnicamente, são conservantes, assim como a baixa temperatura das geladeiras. Em vez de generalizar, é melhor entender os efeitos de cada substância isoladamente.
Os nitritos são aquilo que antigamente se conhecia por salitre. Ele evita a propagação da bactéria causadora do botulismo – aquela que, além de paralisar a cara das madames botocadas, pode ser fatal quando ingerida em uma conserva. O salitre é necessário para que se possa vender produtos suínos em escala industrial, o que não o livra de seus efeitos colaterais. O povo da velha escola sabe que ele era largamente utilizado no rancho dos quartéis para acalmar o impulso sexual da molecada que compõe as tropas. Em outras palavras, reduz a libido. E, recentemente, se descobriram indícios significativos que vinculam os nitritos a alguns tipos de câncer.
Se puder evitar esse tipo de comida, é melhor. Não apenas pela saúde . O fato é que os nitritos alteram significativamente a carne. É por causa deles que tudo o que é produto suíno é cor-de-rosa: linguiça pink, presunto rosadinho, costela salgada que puxa para o carmim. Essa alteração química se percebe também no sabor. Linguiça tem gosto de linguiça, não gosto de carne de porco picada e temperada. Talvez você goste, porque é viciante (eu gosto), mas juro que a linguiça sem salitre é mais gostosa. Só que fica meio cinza depois de cozida – nada que um pouco de páprica ou colorau não resolva.
A segunda razão para fazer linguiça, no meu entender, é a diversão. Gosto de investir meu tempo em experiências culinárias, a razão de existir deste site. Você também deve gostar, se não não teria lido o texto até aqui. Então passemos ao que interessa.
O único equipamento exigido para fazer linguiça em casa é um funil. Mas sua vida vai ser imensamente facilitada se você tiver também um moedor de carne com bico de encher linguiça. Socar a carne para dentro da tripa com um funil é um trampo insano: sei disso porque sempre sobra um restinho de carne dentro do moedor, e então é preciso terminar o serviço no modo manual.
Quanto ao material, você vai precisar de tripas secas. Existem três variedades: de boi, de carneiro e de porco. As de boi são muito grossas, as de carneiro são muito finas; fique com as de porco. Esse tipo de coisa você compra pelo metro nos mercados antigões que costumam existir no centro de cada cidade brasileira. Em São Paulo vende, imagino que deva ser ainda mais fácil de se achar no interior.
As tripas vêm numa espécie de réstia, maço, sei lá que substantivo coletivo. Sei que é um negócio bem feio, com todos os fios de tripa presos pelas duas extremidades em um único ponto. Você escolhe a sua favorita, corta as duas pontas, daí coloca para hidratar em água com um pouco de suco de limão (foi o homem do Mercadão que me disse para fazer isso). A aparência final é a lindeza da foto aí em cima.
Já deixei a tripa hidratar por cinco muntos, já deixei por algumas horas. Aparentemente, não faz diferença. Alguns pedaços de tripa sempre vão estourar quando você está preparando a linguiça. Acho que tem a ver com o pedaço do intestino do porco que você está usando. As tripas que têm ranhuras visíveis, na minha experiência, são mais resistentes. Mas você só percebe essas ranhuras no meio do trabalho. É algo que requer paciência, bom treino para nervosinhos como eu.
Agora, ao recheio. Vamos por tópicos.
Qualquer tipo de carne (suína ou de outros animais) pode ser usada, desde que a proporção final de gordura fique entre 30% e 40%. Linguiça precisa ser gorda para ficar úmida, não é comida para a galera fitness
Picar é melhor do que moer. A não ser que você tenha um moedor profissional com disco especial para linguiça. Mas o moedor de carne continua sendo necessário (ok, fortemente recomendado) na hora de encher a tripa.
A carne precisa estar muito fria na hora de ser moída ou picada. De outro modo, vira uma maçaroca. Ao comprar a peça, fatie-a e deixe os pedaços no congelador, sem sobrepor, por duas horas antes de começar a trabalhar. Quando for picar ou moer, pegue um pedaço por vez do congelador. Além de melhorar a textura, facilita enormemente o trabalho.
A linguiça industrial usa substâncias para aglutinar o recheio, impedir que ele se desfaça em pedaços ao ser cortado. Um pouco de maizena ajuda a segurar os pedaços de carne, mas não resolve totalmente a questão. C'est la vie: linguiça desmilinguida é sinal de linguiça caseira. Um bom sinal.
À receita, finalmente. O tempero é sugestão, você pode viajar o quanto quiser. Só repare que algumas coisas (molho inglês e shoyu, por exemplo) são muito salgadas. Compense.
Ingredientes
1 kg de copa lombo
ou
700 g de carne magra e 300 g de toucinho
15 g (3 colheres de chá) de sal
1 copo pequeno de vinho tinto seco
2 colheres (sopa) de maizena
3 folhas de louro
Pimenta-do-reino, noz-moscada e pimenta calabresa a gosto.
Tripas secas (quanto baste)
1 limão
Modo de fazer
Deixe a carne no congelador por duas horas. Moa ou pique em cubos bem pequenos, com cerca de 2 mm de lado.
Tempere a carne em uma travessa de vidro refratário com tampa. Deixe pegar sabor por um dia ou, no mínimo, duas horas.
Hidrate as tripas em água com suco de limão. Coloque uns 3 ou 4 pedaços, pois é bem provável que haja perdas.
Encaixe a tripa hidratada no bico do moedor de carne ou do funil, fechando a outra extremidade com um nó.
Encha a linguiça. Se usar máquina, pare de vez em quando para compactar a linguiça. Quando a coisa ficar comprida demais (sem malícia), interrompa a operação: corte a tripa e retire o bastante de carne para ter o comprimento adequado para dar o nó na outra ponta da linguiça. Torça a linguiça em vários pontos para fazer os gomos.
Repita as operações 4 e 5 até acabar a carne.
Use em até 2 dias, congele ou defume.